13 DE MAIO: ENTRE A MEMÓRIA E A AÇÃO
ENTREVISTA COM ROSANA MACHADO DE SOUZA

Neste 13 de Maio, a ADUFSJ conversa com a professora Rosana Machado de Souza, artista, pesquisadora e docente do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sudeste de Minas Gerais – Campus São João del-Rei.
Mestra em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), especialista em Arte, Educação e Tecnologias Contemporâneas pela Universidade de Brasília (UnB) e graduada em Interpretação Teatral e Licenciatura em Artes Cênicas (UFMG), Rosana tem trajetória marcada pela atuação com Teatro Negro, corporeidade, relações étnico-raciais e mídias na educação.
Foi pró-reitora de Extensão do IF Sudeste MG e atua na articulação entre arte, educação e antirracismo a partir de uma perspectiva coletiva e crítica. Nesta entrevista, propõe um olhar atento para os silêncios e apagamentos em torno do 13 de Maio, reforçando a urgência de práticas pedagógicas comprometidas com a luta antirracista e com a valorização da presença negra nas instituições de ensino.
1 - O 13 de maio é muitas vezes lembrado como o "fim" oficial da escravidão no Brasil, mas também é criticado por ocultar as lutas negras por liberdade. Como o Teatro Negro e a arte podem contribuir para recontar essa história sob uma perspectiva crítica e emancipada?
O 13 de maio foi marcado oficialmente na nossa história como o Dia da Abolição da Escravatura. Mas, como essa abolição é uma abolição inacabada, uma abolição incompleta, na qual a gente ainda vê as desigualdades, o genocídio da população negra, o 13 de maio tem sido denunciado. Ele tem sido utilizado como um dia de denúncia. Então, mais do que o Dia da Abolição da Escravatura, o 13 de maio é o Dia Nacional de Denúncia contra o Racismo.
É um dia para fazermos reflexões sobre essa abolição inacabada, sobre a desigualdade racial no Brasil, sobre as invisibilidades e todas as mazelas que ainda assolam a população negra no nosso país. Quando perguntam como o teatro negro e a arte podem contribuir para recontar essa história, nós já temos, na história do próprio país, diversos grupos de teatro negro ou artistas negros que fazem esse trabalho. Seja com um trabalho marcadamente antirracista, seja com a simples existência desse corpo negro que ocupa a cena, que ocupa a dança e os diversos espaços nas artes, nas quais os corpos fazem o trabalho artístico.
Eu gosto sempre de citar o Teatro Experimental do Negro, com Abdias do Nascimento, mas também gosto muito de citar os grupos contemporâneos, os que estão hoje vigentes, atuantes. Não posso deixar de citar, em Salvador, por exemplo, o Bando de Teatro Olodum, que é um grupo teatral com uma carreira maravilhosa, extensa, e tantos outros no Brasil. Temos, por exemplo, o Fórum Nacional de Performance Negra, que reúne muitos desses grupos, desses artistas, e vem fazendo denúncia, mas também vem fazendo principalmente arte.
A Lei 10.639, de 2003, e a 11.645, de 2008, que tornaram obrigatórios o ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira — e, no caso da segunda, também a indígena — têm contribuído para modificar um pouco essas ausências, pensando na educação. Mas ainda é necessário muita caminhada para a gente conseguir um resultado satisfatório da forma que achamos que seria adequado.
2 - As universidades e institutos federais são espaços que tem buscado ampliar o acesso de grupos historicamente excluídos. Que desafios e potências você identifica ao trabalhar a questão racial e a diversidade dentro da rede federal de ensino?
Eu comecei a falar um pouco sobre isso na resposta anterior. Quando a gente tem as duas leis, a 10.639 e a 11.645, e depois as Diretrizes Curriculares Nacionais para a implementação da História e Cultura Africana e Afro-Brasileira e da Educação para as Relações Étnico-Raciais, esses documentos nos dão uma possibilidade, um embasamento, para que as universidades e os institutos federais possam começar a mudar um pouco essas ausências.
Currículo é poder. E, reconhecendo isso, quando temos essas leis que impulsionam, que obrigam, que criam a possibilidade de fazermos pressão para que os currículos contemplem essas histórias — para que elas não sejam invisibilizadas, deixadas em segundo plano — a gente começa a avançar. A verdade é que muitas vezes essas histórias são ocultadas. Pegando um passado recente, há 30 anos, 20 anos, a escolarização não trazia nada disso. Quando essa lei foi criada, as pessoas achavam que não existia nada que pudesse ser colocado no currículo para modificar aquele currículo eurocêntrico. Hoje muita coisa mudou. Acho que tivemos avanços.
E não posso deixar de citar, porque estamos falando de currículo, de poder, e, nesse contexto, estamos falando do trabalho de professores, de servidores técnico-administrativos, mas também de um trabalho que é fundamental: a pressão dos próprios estudantes. A Lei de Cotas, por exemplo, que faz com que tenhamos um maior número de estudantes negros nas instituições federais de educação, cria também um tensionamento. Os currículos não podem mais ocultar essa história, porque chegam estudantes questionando isso: “Por que eu não tenho um professor negro?”, “Por que não tenho, no meu currículo, uma história que dialogue com os meus antepassados africanos, que foram escravizados?”.
Então, todas essas movimentações, essas tensões que são criadas... Quando conseguimos avançar com a lei, ela ajuda a tensionar, ela permite que as universidades e os institutos federais contribuam para essa mudança.
3 - A formação de professores é um campo estratégico para a construção de uma educação antirracista. De que maneira a arte, e especialmente o teatro, pode ser incorporada como ferramenta crítica na formação docente, com foco nas relações étnico-raciais?
Sem dúvidas, a formação de professores é um campo estratégico. Quando temos a possibilidade de fazer arte, de fazer teatro que possa tensionar essas estruturas, é uma forma de pensar fora da caixa. O ambiente acadêmico costuma, muitas vezes, se fechar em si mesmo. Então, quando transformamos as ações e reflexões que produzimos dentro das instituições em algo que também possa atingir a comunidade, isso tem um valor muito grande. E aí eu falo um pouco dessa minha atuação com a extensão.
O teatro tem esse poder, a arte tem esse poder. Isso é um ponto transformador. No IF Sudeste MG, onde eu leciono, não sou professora de teatro — sou professora de arte — e ministro disciplinas que dialogam com corporeidade e diversidade. Tenho muitas disciplinas sobre diversidade étnico-racial nos cursos de Letras, nos cursos de graduação, inclusive nos cursos tecnólogos.
Eu entendo e concordo que na formação de professores temos um potencial muito grande, mas a verdade é que o letramento racial é importante e necessário para todas as áreas de formação no nosso país. No IF Sudeste MG, por exemplo, temos o curso de Tecnólogo em Recursos Humanos. Olha só que interessante: como conseguimos modificar a formação desses profissionais para que os processos de exclusão — que normalmente deixam de fora pessoas negras nos processos de recrutamento e seleção — possam ser transformados por meio da educação.
A formação de professores, sem dúvida, é um espaço necessário de ser ocupado. E no IF Sudeste MG fazemos isso nos cursos de Letras, nas disciplinas de Didática e Trabalho Docente. Mas que essas também sejam reflexões em diversos outros espaços de formação do país.
4 - Seu trabalho com corporeidade e relações étnico-raciais aponta para a centralidade do corpo negro na experiência educacional. Que marcas da herança escravocrata ainda se manifestam nas formas de controle e vigilância sobre esses corpos nas instituições de ensino?
Eu tenho minhas dúvidas se meu trabalho aponta para a centralidade do corpo negro na experiência educacional. Na verdade, acho que ele aponta para esse silenciamento, sabe? Acho que ele mostra como, muitas vezes, esse corpo não está ocupando os espaços — inclusive na experiência educacional. Principalmente na educação superior, na pesquisa, nas discussões científicas.
Quanto mais a gente galga, quanto mais avança nas titulações, nos espaços que exigem reconhecimento de trajetória, de memorial, menos a gente vê pessoas negras. Então, talvez o meu trabalho problematize essa ausência. Ele apresenta críticas a esse espaço que ainda não está sendo ocupado pelo corpo negro.
Eu percebo até hoje o espanto das pessoas quando veem uma mulher negra indo fazer uma palestra. “Ah, é você?” É óbvio que, quando a temática é étnico-racial, até se espera isso. Mas ainda assim temos esse tipo de situação. Muitas vezes, não são pessoas negras falando sobre corporeidade negra. E, às vezes, a branquitude, principalmente, não questiona essa ausência. Silencia e se mantém confortável.
Quanto às marcas da herança escravocrata que ainda se manifestam como formas de controle e vigilância, olha... é uma resposta delicada. O que percebo e estudo é como essas relações são muito sutis. Essas marcas se aproximam da ideia de racismo cordial.
O racismo cordial é uma das características do racismo no Brasil: não é abertamente agressivo ou ofensivo, mas cria amarras, cria dificuldades para se fazer algum tipo de justiça racial. E essa é, pra mim, uma das marcas mais nítidas. Hoje sou professora, sou servidora pública federal — um espaço de poder, de certo privilégio econômico —, mas isso não anula algumas vivências que tenho enquanto mulher negra.
Um olhar de desconfiança quando você vai falar, por exemplo... É muito sutil, mas é desgastante. Nem preciso falar da questão dos aeroportos, das lojas... isso é cotidiano. Mas nas instituições de ensino também acontece. A gente não pode achar que elas estão isentas. A instituição de ensino é um recorte da sociedade. E, se na sociedade existe racismo, dentro das instituições também.
Existe, sim, uma possibilidade maior de diálogo, de questionamento. Mas essas marcas ainda persistem nesses vieses sutis, nesse racismo cordial, nesses tensionamentos que a gente encontra.
5 - Como mulher negra, artista e educadora, qual é o peso simbólico e político de ocupar espaços de gestão e liderança em instituições públicas? Que caminhos ainda precisam ser abertos para que mais mulheres negras estejam nesses lugares?
Não é simples. É cheio de tensões. Ser uma mulher negra, artista, educadora, e ocupar espaços de gestão e liderança em instituições de ensino é desafiador. Esses espaços ainda são majoritariamente ocupados por homens brancos e mais velhos.
Eu não sou mais jovenzinha, mas ainda reconheço que na educação tem gente mais velha do que eu. E acho justo que a experiência conte para ocupar esses espaços. Mas o que a gente percebe é que ainda é necessário contar com gestores e gestoras brancas que tenham sensibilidade para essa temática e que façam questão de ter pessoas negras nos seus quadros de escolha.
Temos hoje uma regulamentação que determina que parte dos cargos de gestão seja ocupada por pessoas negras. Só que isso ainda não está sendo colocado em prática como deveria. Pouco se discute isso nas instituições. Está na hora de discutir: como vamos colocar isso em prática? Como os gestores vão escolher gestores negros para ocupar esses espaços?
E, assim como dizemos que cota não é esmola, essa cota para espaços de gestão também não é esmola. Isso é combate ao racismo que nos deixa de fora. Eu sei que tenho competência para ocupar um cargo de gestão. Tanto que ocupei. E avalio que fiz uma boa gestão. Encerrei agora, em 28 de abril, com bons avanços. Tenho competência para estar ali. Não sem erros. Assim como os gestores brancos também erram. Mas há um processo que nos faz parecer que não temos competência, que não saberemos fazer. E isso é racismo.
Por que eu não saberia? Por que ele acha que tem mais condições do que eu? Quando encontramos gestores sensíveis, que dizem “preciso romper com essa exclusão” e escolhem gestores negros, isso é um exercício necessário. Muitas vezes são esses gestores brancos que estão no poder de escolha.
Então não é algo simples. E, quando ocupamos esse espaço, é fundamental fazermos o trabalho que nos foi designado, mas também trazer para a pauta a construção de uma educação antirracista.
Porque isso é o que faz a diferença. A ideia do Ubuntu — “eu sou porque nós somos”, do coletivo — só se torna real se quem ocupar esses espaços não esquecer sua negritude. E a verdade é que a gente não esquece. Não nos deixam esquecer. E nas nossas decisões, nas nossas ações enquanto gestores, essa marca precisa aparecer. Quando se ocupa um espaço de poder, tem que poder fazer algo para romper esse ciclo de silenciamento. Porque, se você não fizer, ninguém vai fazer.
Sobre os caminhos que ainda precisam ser abertos, acho que é esse reconhecimento. Precisamos da implementação desse regulamento, desse dispositivo legal que determina a porcentagem de gestores negros. Não é deixá-lo quietinho, fingir que ele não existe. Precisamos tensionar para que ele seja colocado em prática nas nossas instituições.
6 - Algo mais que você gostaria de acrescentar que não foi abordado ao longo da entrevista?
Eu só quero terminar falando da importância do trabalho coletivo. Se ainda somos poucos negros e negras nas instituições federais de educação,mesmo já tendo uma lei de cotas para concursos públicos que está aí há mais de uma década, é preciso se perguntar: por que ainda somos poucos? Esses tensionamentos, essas disputas, só podem ser enfrentados no coletivo.
Quero encerrar minha fala reforçando essa importância. Numa cidade como a nossa, São João del-Rei, e num estado tão grande como Minas Gerais, a gente só consegue fazer alguma diferença se trabalhar de forma coletiva. Aproveito, então, para fazer um convite: que possamos estreitar os laços entre a UFSJ e o Instituto Federal do Sudeste de Minas Gerais – Campus São João del-Rei nessa luta antirracista, contando, obviamente, com o apoio dos sindicatos.
A verdade é que, se não fizermos ações que coloquem os trabalhadores no centro das discussões, as decisões tomadas vão continuar refletindo uma realidade que não dialoga com aquilo em que acreditamos. Então, obrigada pelo convite para dar esse depoimento, para fazer parte dos trabalhos em torno do 13 de maio que vocês estão desenvolvendo. Mas quero, principalmente, deixar esse convite: que estejamos unidos enquanto classe trabalhadora das instituições de educação da cidade de São João del-Rei e da região.