DIA DA CONQUISTA DO VOTO FEMININO NO BRASIL
Entrevista com Camila Maria Risso Sales

Camila Maria Risso Sales é professora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Mestre e doutora em Ciência Política, graduada em Ciências Sociais e em Direito, ela ocupa um lugar de fala privilegiado para analisar os desafios contemporâneos das mulheres brasileiras para uma participação mais efetiva na política, a partir de uma perspectiva não só histórica, como também interseccional. Confira:
1- As mulheres brasileiras conquistaram o direito ao voto há 92 anos. Quais são hoje os desafios quanto à participação feminina na política?
Os desafios hoje são os desafios da própria origem da política. A política desde sempre foi concebida como um espaço da masculinidade. Quando se estabelece o direito ao voto, os homens não precisaram reivindicá-lo, o voto masculino foi um dado, algumas vezes com recorte de classe, ou raça, mas os “escolhidos” para escolher eram invariavelmente homens. Já as mulheres precisaram lutar por esse direito, e ele é muito recente, uma conquista do século XX.
Mais do que isso, não só a política como a esfera pública como um todo sempre foi entendida como primordialmente masculina. Da mesma forma que é naturalizado na sociedade que o espaço da mulher é o da casa, da domesticidade. Sendo assim, os desafios para a participação das mulheres na política são obstáculos para que elas participem da vida pública de maneira geral. A política, institucional ou não, depende de uma dedicação que muitas vezes as mulheres não podem ter, uma vez que estão ocupadas com a reprodução da vida, com os cuidados com a casa, as crianças, os idosos.
O principal ativo da vida pública é o tempo, e é exatamente a disponibilidade de tempo que é retirada das mulheres com a divisão desigual das tarefas domésticas. Essa é uma barreira fundamental. Ela se desdobra em outras atividades e a ausência de mulheres na política, em função desses obstáculos, muitas vezes é vista como desinteresse e, obviamente, isso acaba sendo usado por aqueles que não têm interesse em democratizar os espaços da política. Isso é agravado por um outro entrave que é a distribuição desigual de recursos. Muito embora o TSE esteja estabelecendo cada vez mais parâmetros para equalizar essa divisão, os partidos também encontram novas formas de não cumprir a determinação.
2- Por que é importante que as mulheres ocupem cada vez mais cargos políticos no Brasil?
A diversidade de representação é um fundamento da democracia. É interessante que os cargos políticos reflitam, de alguma maneira, a estrutura da sociedade. Não apenas em termos de gênero, mas também em relação à classe, raça, etnia. A política brasileira hoje é altamente disfuncional nesse sentido. Há setores da sociedade super-representados, como homens, empresários, por exemplo, e setores sub-representados, como é o caso das mulheres que são alarmantemente minoritárias tanto no executivo como no legislativo. E a representação tem a ver também com a defesa de interesses e temáticas que dizem respeito às mulheres. Debates sobre maternidade, aborto, previdência ou outros temas ganham em qualidade quando se insere a perspectiva das mulheres, não apenas de forma minoritária, mas com condições de suas propostas sejam efetivadas. Temos o exemplo da Constituição de 1988 que, mesmo com uma bancada feminina amplamente minoritária, ganhou em qualidade devido à atuação das mulheres.
3- Na última eleição, as mulheres ocuparam apenas 10,1% dos cargos para prefeitos e prefeitas em Minas Gerais. O machismo e o conservadorismo influenciam esse resultado?
Certamente o baixíssimo número de mulheres no poder executivo municipal é um reflexo da estrutura machista, patriarcal e conservadora da política e do espaço público. As barreiras, os entraves, as portas são mais difíceis, numerosas e às vezes intransponíveis para as mulheres. Todas as pessoas perdem com isso. Perdemos a possibilidade de aprofundamento da democracia e de diversificação das instâncias decisórias.
Quando olhamos para os dados, é chocante, tanto para o executivo quando para o legislativo. Em Minas Gerais temos apenas 10% de prefeitas, no Brasil temos apenas duas governadoras, ambas na região Nordeste. Também só temos duas prefeitas de capitais. Isso não pode ser considerado normal nem uma obra do acaso. Esses dados são resultado de um processo de exclusão das mulheres da política e da esfera pública como um todo.
4- Como você avalia a instituição da cota de gênero como mecanismo de incentivo à participação feminina na política?
Diante do cenário que vivemos é essencial, e os mecanismos que temos precisam ser melhorados, aprofundados. A lei prevê hoje a reserva apenas no quadro de candidaturas para o poder legislativo. Foi um avanço, mas é insuficiente. Precisamos reservar cadeiras, de fato. Existe um projeto tramitando nesse sentido, o PL 1.951/2021, que prevê um escalonamento da reserva de vagas para mulheres no legislativo a cada eleição até o limite de 30% das cadeiras nas eleições de 2038 ou 2040.
Outro ponto é a necessidade de regras mais rígidas e fiscalização quanto às regulamentações que já existem, o mínimo, que é a reserva de candidaturas é sequencialmente desrespeitado pelos partidos, isso sem falar da distribuição de recursos. Uma campanha política sem orçamento digno é praticamente condenada ao fracasso. Esse é um ponto que muitas vezes as pessoas sentem um certo receio de tocar, mas o fato é que para fazer política é preciso que existam recursos financeiros.
Eu também gosto sempre de mencionar a redação do dispositivo legal que faz a reserva das candidaturas femininas na lei eleitoral, acho ele um sintoma muito interessante da forma como a masculinidade pensa as mulheres na política: art. 10, §3º “Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para candidaturas de cada sexo”. Percebem que a palavra mulher não é mencionada?
5- Outro importante recorte quanto à representatividade na política é o étnico/racial. As conquistas femininas avançaram na representatividade de mulheres negras e indígenas? O quanto ainda precisa ser feito?
Estamos avançando, mas pouco e lentamente. Não acho que seja suficiente para uma democracia do tamanho da brasileira. Hoje 72% das deputadas e deputados se autodeclararam brancas e brancos. Ao mesmo tempo, os dados mais recentes do censo dão conta que 55,5% da população brasileira é negra (soma de pessoas autodeclaradas pretas e pardas). E hoje, o maior grupo populacional do Brasil é o pardo, são 45,3% da população. Definitivamente, a política não reflete a sociedade nem em termos de gênero e nem em termos raciais.
Quando observamos a representação indígena, na Câmara das Deputadas e Deputadas subimos de 1, nas eleições de 2018 para 5 nas eleições de 2022. É, sem dúvida, um dado importante. Mas, se pensarmos em termos na importância dos povos originários, das fundamentais pautas a serem defendidas e da representatividade que estas necessitam ainda é bastante insuficiente.