ORGULHO LGBTQIA+: “O PRECONCEITO É COISA DE GENTE CAFONA E DE MAL COM A VIDA”

Confira a reportagem com Thales Moura, homem trans, professor de literatura e membro do conselho Municipal LGBTQIA+

Em 28 de junho de 1969, membros da comunidade LGBT se revoltaram e reagiram, em manifestações espontâneas, a invasão da polícia nova-iorquina ao bar Stonewall Inn, um local conhecido como um dos poucos estabelecimentos da cidade, na época, a receber um público abertamente homossexual. 

É em alusão a esses eventos, que ficaram marcados na história como “Rebelião de Stonewall Inn”, que o dia 28 de junho é o Dia Internacional do Orgulho LGBTQIAP+. 

Mais de 50 anos depois, a comunidade LGBTQIAP+ ainda enfrenta o preconceito e a intolerância, apesar de também ter obtido diversas conquistas, todas a partir de muita luta e resistência. Ainda sim, cheia de particularidades, como todos os grupos, as conquistas da comunidade LGBTQIAP+ não são lineares e equivalentes para todos os membros da sigla, pessoas trans, travestis e não binárias enfrentam violências físicas e simbólicas de maneira muito mais contundente. 

A ignorância é a base do preconceito

Homem trans, professor de Português e Literatura e doutorando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Thales Gabriel Trindade de Moura, conta que já sentiu muita raiva, mas hoje entende o preconceito como o máximo da ignorância e falta de acesso à informação. 

“Eu consegui transformar a raiva em pena, o que me dá forças para passar por todas as situações desgastantes em relação à minha jornada enquanto homem trans. O preconceito é coisa de gente cafona e de mal com a vida, um gasto totalmente desnecessário de energia”, afirma. 

Preconceito esse que ainda é, muitas vezes, vivenciado dentro da própria comunidade LGBTQIAP+, e não apenas por parte de pessoas cisheteronormativas. “Talvez, isso seja parte de nossa condição humana, mas que precisamos, urgentemente, superar”, enfatiza Thales. 

O preconceito e as políticas públicas

Reativado em 2021, o Conselho Municipal LGBTQIA+ de São João del-Rei é um espaço que reúne representantes da Prefeitura e da sociedade civil para discutir pautas de interesse da população LGBTQIA+. O órgão tem função consultiva e deliberativa, ou seja, além de atuar como ponto de apoio do poder municipal para que ele consulte agendas e demandas importantes da população LGBTQIA+, também delibera quais políticas a Prefeitura poderá ou não executar. 

Membro do Conselho Municipal LGBTQIA+, Thales Moura conta que a mais recente conquista do grupo foi a implementação da PrEP (Profilaxia Pré-Exposição), na cidade, uma forma de medicação combinada que garante proteção antes da exposição à infecção pelo vírus HIV. 

O professor explica que “a PrEP é indicada para pessoas que estejam mais expostas ao risco de contaminação pelo vírus, seja por questões de vulnerabilidade social ou por práticas sexuais que as coloquem em risco de contaminação”. 

Esse tratamento já é ofertado gratuitamente pelo SUS desde 2017, não gerando nenhum custo às prefeituras municipais com medicação e treinamento de pessoal. “No entanto, durante algum tempo houve resistência do poder público municipal na implementação do tratamento”, sinaliza. 

Atualmente, o serviço é oferecido pelo CTA (Centro de Testagem e Acolhimento), que funciona na Avenida Tiradentes, nº 136, no centro.  

Para além dessa conquista, as dificuldades permanecem. A principal delas é a falta de acesso das pessoas trans, travestis e não-binárias aos serviços de atendimento em função da desinformação e da constante tentativa de cerceamento ao atendimento médico, sob prerrogativa de que os profissionais não possuem conhecimento para suprir as demandas desse público. 

“Logicamente, esse tipo de atitude é, no mínimo, desonesta por parte de certos profissionais de saúde que, no limite, atuam de forma criminosa ao negar atendimento médico a essas pessoas”, diz o professor. 

Segundo ele, existe uma falsa concepção de que o atendimento médico às pessoas trans, travestis e não-binárias não deve ser visto como uma demanda de saúde pública, como se esses tipos de atendimentos “tirassem” o lugar de outros pacientes “mais urgentes e necessários”. 

O Conselho Municipal LGBTQIA+ tem buscado dialogar com o poder municipal da cidade para a implementação de um serviço de atendimento às pessoas trans no âmbito da saúde.

Nada mais tradicional que o preconceito

Vivenciando na pele como é ser uma pessoa trans em uma cidade tradicional como São João del-Rei, Thales fala também sobre como é ter vozes, vivências, sexualidades e tudo mais que destoe do “usual”, abafado pelo som de sinos milenares em torres de grandes igrejas barrocas. 

“Tudo está muito bem sacramentado e deve ficar protegido de quaisquer influências que ousem macular essa atmosfera. Sob essa ótica, qualquer conversa a respeito de sexualidade e/ou identidades não normativas é vista com muito espanto”, diz ele.

No entanto, o professor destaca a presença da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) na cidade como algo muito positivo nesse sentido, já que coloca o município em contato com tudo o que há de novidade, pessoas, discussões, culturas distintas. 

Apesar disso, o peso do lado tradicionalista da cidade ainda permanece e é responsável pela principal dificuldade encontrada pela comunidade trans em São João del-Rei, que é conseguir realizar uma consulta sem ser desrespeitada. 

Thales relata que, na maioria das vezes, a resposta às demandas desse público são sempre “não”; “Não faço esse tipo de atendimento”; “Não tem médico para isso”; “Não sei do que você está falando”; “Isso não existe”; “Não posso te atender com essa demanda”; e outros. 

“A situação é tão alarmante que nem no contexto particular se têm notícias de médicos “especializados” no atendimento respeitando os Direitos Humanos”, salienta. 

O preconceito e a marginalização

Outro impasse apontado pelo professor a respeito das vivências de pessoas trans em São João del-Rei diz respeito ao acesso médico para o acompanhamento de sua hormonioterapia. Para as pessoas que iniciam seu processo de transição de gênero, sobretudo utilizando-se de tecnologias médicas, como a terapia hormonal, há necessidade de acompanhamento médico e a realização de exames de rotina.

No entanto, com a dificuldade enfrentada de acesso a esses profissionais, muitos membros da comunidade acabam recorrendo a automedicação e a compra de hormônios por vias ilegais e inseguras, marginalizando ainda mais essa parte da população. 

O professor aponta também que, para além das questões de saúde, o preconceito ainda acaba por expulsar pessoas trans, desde cedo, do convívio social, quando as instituições escolares têm dificuldades de reconhecer a identidade de gênero reclamada por pessoas trans e não-binárias, como a resistência em aceitar o uso do nome social dessas pessoas. 

“Como consequência, pessoas trans, travestis e não-binárias seguem até a vida adulta invisibilizadas, com defasagem escolar e dificuldade de inserção no mercado de trabalho”, destaca o professor. 

Finalizando, ele frisa que a imagem que se constrói de pessoas trans na sociedade ainda é muito negativa e, em razão disso, muitas das vezes, pessoas trans, travestis e não-binárias preferem se camuflar. 

“A forma como a sociedade consegue integrar a população trans tem funcionado, majoritariamente, de forma caricaturizada, desrespeitosa e descompromissada para com suas histórias”, diz. 

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