LIVE DISCUTE A RELAÇÃO ENTRE PANDEMIA E INTERDIÇÃO DOS ESPAÇOS DEMOCRÁTICOS

No debate, três especialista demonstraram como o estado de emergência pode e vem sendo usado para negar direitos humanos

A pandemia da Covid-19 desvelou as desigualdades e abismos em um continente marcado por violações históricas aos direitos humanos. E o “estado de emergência” decretado pelos países, a partir da crise sanitária, tem aprofundado as ameaças a direitos e colocado em risco conquistas de sociedades inteiras, ao tempo em que impõem perdas a grupos minoritários e vulneráveis da população. 

A questão foi o tema do debate na live “Violação dos direitos humanos em tempos de pandemia”, promovida pela ADUFSJ - Seção Sindical e pelo Sinds UFSJ, na última quinta (18). Mediada pela 1ª secretária da ADUFSJ, jurista e professora da UFSJ, Maria Clara Santos, contou com a participação de Tayara Lemos, jurista, coordenadora do Centro de Referência em Direitos Humanos da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF); Tereza Spyer, historiadora, professora da Universidade Federal da Integração Latino-Americana; e Henrique Napoleão Alves, advogado na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. 

Minorias e privação de direitos

A pandemia e a situação de estado de emergência para conter os avanços do vírus podem, muitas vezes, ser usados como artifícios para reprimir direitos humanos da população, como defenderam os convidados. Assim, medidas que restringem liberdades podem ser adotadas e defendidas como forma de “preservar a saúde”. 

Mesmo com todas as recomendações da Organização Mundial da Saúde sobre ações de isolamento social e a valorização de deliberações mais duras, Henrique Napoleão Alves reitera que a orientação é que as medidas de enfrentamento ao vírus sejam moldadas à realidade de cada país, de forma a respeitar os outros direitos. 

A Comissão Interamericana, de 1985, discorre sobre uma série de situações e ações de enfrentamento. Segundo Henrique Alves, o documento “impõe que deve se garantir aos mais pobres os mesmos direitos de se proteger da doença que os mais ricos têm”, por exemplo. 

Em situações de emergência, determinadas minorias representativas acabam sofrendo mais do que outros grupos. Como por exemplo, na atual pandemia, mulheres e crianças vítimas de violência doméstica, que precisam conviver com o agressor por um período grande de tempo dentro de casa, ou mesmo pessoas transsexuais, que têm atendimento médico negado, além de comunidades indígenas e quilombolas, como expõe o advogado.  

Desta forma, é dever do Estado garantir que estas minorias tenham as mesmas condições de se proteger da Covid-19 como qualquer outra pessoa que não enfrenta as mesmas dificuldades. Porém, isso nem sempre acontece. 

Fechamento de canais democráticos

A jurista Tayara Lemos explica que, muitas vezes, a negação destes direitos básicos à sobrevivência, principalmente em um estado de emergência como atual, pode acontecer devido ao fechamento dos canais de negociação democrática e do incentivo ao combate de um inimigo objetivo. 

Isso quer dizer que, com o decreto de situação de emergência e a necessidade de se manter o isolamento social, as pessoas acabam sendo afastadas dos espaços democráticos. Um exemplo disso é o fechamentos de canais como audiências públicas e reuniões, que acabam excluindo a sociedade civil dos debates de projetos de leis e outras discussões importantes.

“A gente começa a perceber uma crise no sistema democrático, se tornando mais visível na pandemia e mostrando como o Estado não trabalha para garantir direitos”, esclarece a coordenadora do Centro de Referência em Direitos Humanos da UFJF.

Além disso, o discurso inflamado pelo bolsonarismo de combate a um inimigo objetivo no Brasil contribui ainda mais para a diminuição destes espaços de democracia e discussão, substituindo-os por espaços autoritários. 

Esse inimigo objetivo do país pode ser, por exemplo, qualquer um que vá contra a “moral e bons costumes”, que seja antipatriota, que não corresponda aos valores familiares impostos pelo novo regime de extrema direita. “Essas coisas se misturam e criam fantasmas e estereótipos não debatíveis. Tudo isso se materializa em combate a grupos em forma de políticas públicas, como a mudança da Funai [fundação nacional do Índio], negando terras indígenas, tirando sites do ar, negando informação”, pontua Tayara Lemos. 

Além disso, vale ressaltar também o discurso de caracterizar a pandemia como uma “gripezinha” do atual presidente brasileiro Jair Bolsonaro e o incentivo para que a população entre em hospitais e tire fotos dos leitos destinados à Covid-19. Tudo isso se configura como forma de deslegitimar a ciência e buscar suprimentos para sustentar a mensagem de que a doença não é tão grave como a “mídia quer fazer parecer”. 

“A pandemia mostrou que o Bolsonaro tem posicionamento negacionista, esconde dados, esconde riscos, aprofunda colapso econômico sob o argumento de salvar a economia, terceiriza a responsabilidade a prefeitos e governadores e ameaça a economia”, completa a especialista.

Memória e democracia

Outro ponto discutido foi a importância da manutenção de espaços de memória para que a população reflita a respeito da história do próprio país e evite a exaltação de ícones e movimentos antidemocráticos. Isso contribui para que, em momentos como o que estamos vivendo, os direitos sejam garantidos e que a população possa manter os espaços de diálogo. 

Estes espaços de memórias são, por exemplo, museus e instituições que mantém registrados os horrores da ditadura militar brasileira. Assim, cria-se a cultura de refletir criticamente sobre esses acontecimentos e evita-se que esses momentos sejam lembrados como situações de vitória. 

Terez Spyer comenta sobre a situação do Chile, que tem passado por momentos agitados na política. Em 2018 foi eleito o atual presidente direitista, Miguel Juan Sebastián Piñera Echenique. A historiadora lembra que, no ano passado, o presidente decretou estado de emergência, restringiu liberdades, decretou toque de recolher e colocou os militares nas ruas do país.

Como protesto, o país foi palco de grande manifestações populares, chamadas de Estallido Social. Foi marcado um plebiscito para abril deste ano, com o objetivo de aprovar ou não uma assembleia constituinte para derrubar a então Constituição chilena, que foi responsável pela grande privatização de serviços no país.

Porém, com a pandemia que atingiu o mundo, o plebiscito foi cancelado e remarcado para outubro. Porém, o governo do Chile se pronunciou dizendo que a votação não vai mais acontecer. 

“Aproveitando a pandemia, Piñera ampliou a Lei de Segurança Nacional, vinda da ditadura, para usar contra população do Estallido Social e também contra a  população de bairros pobres. [...] Os movimento sociais do Estallido estão tentando se reorganizar durante a pandemia para movimentar o pós pandemia e forçar o governo a fazer o plebiscito”, esclarece. 

A especialista explica que, assim como no Brasil, onde os militares responsáveis pela ditadura receberam anistia e ainda há exaltação deste período antidemocrático, o Chile também sofre com a falta de espaços de memória. 

No país, ao mesmo tempo, são mantidos com verbas públicas o Museu da Memória e dos Direitos Humanos - que registra a violação de direitos humanos durante o regime cívico-militar de Pinochet de 1973 a 1990 - e também um museu sobre o próprio ex-líder autoritário.

Porém, nos últimos anos, com as manifestações e o Estallido Social, o Chile tem levantado discussões importantes sobre história e espaços democráticos. “[O país] radicalizou coisas e aqui no Brasil estamos passando por um momento de radicalização”, expõe Tereza Spyer.

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